Também muito longe, nos arquivos da memória mais longinqua, no sotão mais bem guardado que é o arquivo da nossa infância, nesse recôndito tesouro, guardo uma mãe diferente de tantas outras que fui conhecendo nas minhas histórias...
Esta mãe concorria com a minha, ficava-lhe atrás apenas por um rebento mais: era berço de nove filhos e visitava a nossa casa nas épocas mais festivas: Natal, Páscoa, férias e noutras, só porque lhe dava na gana.
Parecia sentir-se em casa, uma casa recheada de filhos que não eram os seus, mas a quem esticava os braços para um colo, ou um carinho, que lhe sobejava ainda dos muitos que distribuia pelos seus.
O passado desta fértil mulher era igualmente fértil em lembranças, que lhe afloravam entrelaçadas num fio sem lógica que nós entendessemos , nas conversas que se desenrolavam de carreirinha, porque muita vida a esperava lá fora.
Chamávamos-lhe a SALTIMBANCA.
Antes de juntar trapinhos com o homem que lhe deu a prole, vivera num circo, filha de mãe trapezista, familiarizada com a existência nómada, parecia que também os seus pensamentos, ideias e conversas não assentavam arreiais! Saltava de uma às outras com a mesma graça com que teria a sua mãe, "trapezista de se lhe tirar o chapéu", segundo as suas palavras, saltado e voado de circo em circo, pela sua vida fora.
A saltimbanca vivia numa barraquinha, e passava grandes dificuldades, mas isso nunca pareceu motivo de tristeza... para ela, tudo era uma festa, a vida uma alegria... assim parecia que outro modo não tinha de encarar os dias.
Vinha pela roupa, também nós eramos muitos, havia sempre qualquer saquinho preparado para partilhar, alguma merceeiria ´sempre útil, mas vinha, sobretudo, pela conversa... não tinha maldade, nem inveja, nunca se sentiu diminuida perante o desafogo com que viviamos, encarava com a maior naturalidade o "abismo" que separava as duas famílias, aliás tudo encarava com naturalidade... até na morte ela vivia as suas alegrias... da mãezinha no caixão, a famosa trapezista, só se recordava de tão linda que ela estava, no seu mais lindo vestido de lantejoulas amarelas... nada de dor, nada de saudade, o orgulho, o prazer de reconhecer que até na morte encontrara a sua beleza... disto me lembrou a minha mãe, eu era ainda muito jovem na época.
Ao pai dos filhos, homem de alta estatura, sêco e com o olhar sombrio, como se tivesse ele de carregar sobre os ombros o peso da tristeza e das preocupações de ambos, arranjou-se-lhe mais tarde trabalho, pois o que tinha estava a matá-lo todos os dias... na fundição de Oeiras lá ía consumindo, os pulmões e o resto, mais do que podia... assim a vida melhorou um pouco... mas não foi isso que trouxe alegria à nossa Saltimbanca... ainda hoje me pergunto de onde lhe vinha tamanha vivacidade... tão redundante alegria que a todos nós contagiava... com se da vida não tivesse recebido mais do que aquilo que alguma vez houvesse pedido...
Talvez o segredo da Saltimbanca fosse nada pedir... tudo aceitar e em tudo ver vida, em tudo existir, numa aventura sem rede num trapézio voador com destino ao céu