descolar dos outros
fugir-lhes do espelho
do reflexo que não me é fiel
e não deixa reflectir o que em mim está para lá dos outros
os meus labirintos, as lágrimas que sequei, os sorrisos compassivos
o sentimento, a ternura, a emoção
o lugar de esperança e dignidade
que dentro de mim guardei para cada ser irmão
no enorme espaço de encontro que trago sempre preparado
não para os encontros banais nem para as conversas ocas
mas para o olho no olho, o coração nas mãos
e nada mais, juro, do que um puro desinteresse
em que só o outro e os seus pesares, as suas alegrias, o seu bem, me interessa
não é assim que o teu espelho me reflecte
não há isenção, não pulsa em ti o que me move
o teu olhar cái sobre mim vindo de outras paragens
o teu mundo espreita o meu
mas é tanto o que fica para lá do meu reflexo no teu espelho...
a imagem que cabe no teu olhar deixa o meu existir de fora
e é tanto e tão maior o que o teu olhar não vê...
arrumada no teu arquivo de: "OUTROS"
para ali fico atirada... estática...
paralisada pelos teus padrões... amordaçada pelos teus cânones...
afunilada...
as côres sem vida própria vão perdendo a intensidade
o reflexo mudo cala-me as palavras e tira-me a melodia
eu, no teu espelho, metálica, sem cheiro, enjaulada em ti, domesticada
em resposta só silêncio; esmagador... imenso... silêncio
e lá, no teu mundo, a minha imagem cativa vai ganhando a palidez das fotos antigas
até que... no fundo de uma velha gaveta de memórias,
esquecida dos espartilhos, e dos outros,
a dança comece, a festa, a alegria
o som da natureza, que, por ser um tudo, não se deixa apanhar no espelho das nossas limitações;
a natureza com a pojança da sua côr, a genialidade da sua criação reduza à sua tremenda insignificância tudo aquilo que os uns reflectem de uns outros,
é quando nela me espelho que recupero então, a minha insignificante relatividade,
a verdadeira dimensão do meu mundo interior
todos os espelhos se quebram
o verdadeiro sol volta a brilhar, entre nuvens, debaixo de chuva,
e eu festejo o meu reflexo na brisa que me embala os sentidos,
nos brotos que rejuvenescem as árvores, a cada ano,
na vida que não pára... nos leva e nos traz a quem amemos
nos leva e nos traz as maravilhosas estações
que não se compadecem com o olhar de quem passa