terça-feira, abril 29

A Saltimbanca

Também muito longe, nos arquivos da memória mais longinqua, no sotão mais bem guardado que é o arquivo da nossa infância, nesse recôndito tesouro, guardo uma mãe diferente de tantas outras que fui conhecendo nas minhas histórias...
Esta mãe concorria com a minha, ficava-lhe atrás apenas por um rebento mais: era berço de nove filhos e visitava a nossa casa nas épocas mais festivas: Natal, Páscoa, férias e noutras, só porque lhe dava na gana.
Parecia sentir-se em casa, uma casa recheada de filhos que não eram os seus, mas a quem esticava os braços para um colo, ou um carinho, que lhe sobejava ainda dos muitos que distribuia pelos seus.
O passado desta fértil mulher era igualmente fértil em lembranças, que lhe afloravam entrelaçadas num fio sem lógica que nós entendessemos , nas conversas que se desenrolavam de carreirinha, porque muita vida a esperava lá fora.
Chamávamos-lhe a SALTIMBANCA.
Antes de juntar trapinhos com o homem que lhe deu a prole, vivera num circo, filha de mãe trapezista, familiarizada com a existência nómada, parecia que também os seus pensamentos, ideias e conversas não assentavam arreiais! Saltava de uma às outras com a mesma graça com que teria a sua mãe, "trapezista de se lhe tirar o chapéu", segundo as suas palavras, saltado e voado de circo em circo, pela sua vida fora.
A saltimbanca vivia numa barraquinha, e passava grandes dificuldades, mas isso nunca pareceu motivo de tristeza... para ela, tudo era uma festa, a vida uma alegria... assim parecia que outro modo não tinha de encarar os dias.
Vinha pela roupa, também nós eramos muitos, havia sempre qualquer saquinho preparado para partilhar, alguma merceeiria ´sempre útil, mas vinha, sobretudo, pela conversa... não tinha maldade, nem inveja, nunca se sentiu diminuida perante o desafogo com que viviamos, encarava com a maior naturalidade o "abismo" que separava as duas famílias, aliás tudo encarava com naturalidade... até na morte ela vivia as suas alegrias... da mãezinha no caixão, a famosa trapezista, só se recordava de tão linda que ela estava, no seu mais lindo vestido de lantejoulas amarelas... nada de dor, nada de saudade, o orgulho, o prazer de reconhecer que até na morte encontrara a sua beleza... disto me lembrou a minha mãe, eu era ainda muito jovem na época.
Ao pai dos filhos, homem de alta estatura, sêco e com o olhar sombrio, como se tivesse ele de carregar sobre os ombros o peso da tristeza e das preocupações de ambos, arranjou-se-lhe mais tarde trabalho, pois o que tinha estava a matá-lo todos os dias... na fundição de Oeiras lá ía consumindo, os pulmões e o resto, mais do que podia... assim a vida melhorou um pouco... mas não foi isso que trouxe alegria à nossa Saltimbanca... ainda hoje me pergunto de onde lhe vinha tamanha vivacidade... tão redundante alegria que a todos nós contagiava... com se da vida não tivesse recebido mais do que aquilo que alguma vez houvesse pedido...
Talvez o segredo da Saltimbanca fosse nada pedir... tudo aceitar e em tudo ver vida, em tudo existir, numa aventura sem rede num trapézio voador com destino ao céu

13 comentários:

Luna disse...

Parabéns!
Foste desafiado(a) por mim a continuar uma corrente de amizade!
Vê tudo aqui...
luna
*bj nês

xistosa, josé torres disse...

Talvez quem "viveu nas alturas", com os pés assentes em terra, veja a maravilha que é caminharmos.
Lá no alto e do alto, não há nem pode haver conversas, só cumplicidades e das maiores e mais cumplices.
E talvez um apego à vida, que cá por baixo nem sonhamos.
Cá junto aos mortais que "não voam", as cumplicidades não estão arreigadas, daí dar(em) maior evasão ás palavras.

Um bom feriado.

Anónimo disse...

Tocou-me este post, muito.

É a alegria que vem de dentro, que não é nunca consumida.
É tão raro haver pessoas assim, que acho deve ter sido um privilégio conhecê-la.

São as lições de vida

beijinho e bom fim de semana

Carla disse...

bela história
beijos

Cristina Paulo disse...

"Talvez o segredo da Saltimbanca fosse nada pedir... tudo aceitar e em tudo ver vida, em tudo existir, numa aventura sem rede num trapézio voador com destino ao céu"
Talvez seja mesmo este o segredo que teimamos em esquecer no meio de vidas stressadas por aquilo que não temos mas sem tempo para apreciarmos o que temos :) Talvez seja isso mesmo...
Beijos e bom resto de semana!

james emanuel de albuquerque disse...

Belos textos.


Um abraço.

inespimentel disse...

Luna, amiga os blogues são correentes intermináveis de amizade e os meus nomeados são todos os que eu visito, os que me visitam e todos os que ainda não me dee ao trabalho de descobrir, viva a amizade.

inespimentel disse...

Xistosa as maiores cumplicidades são muitas vezes estabelecidas em silêncio.

inespimentel disse...

Marta é dificil defender essa alegria interior das agressões do dia a dia, mas vale a pena ir tentando... beijo

inespimentel disse...

Carla um abraço para ti e espero que as boas histórias da tua vida se vão sobrepondo às menos boas... e às más.Beijo para ti

inespimentel disse...

É Siala acho que ACEITAÇÃO é uma palavra CHAVE... passá-la à práctica não é nada fácil...

inespimentel disse...

Ainda bem que gostou, James.

Anónimo disse...

Sou a marta

Assumida, em post de hoje, a minha identidade, tu que desconfiavas...


Beijo

o que me faz feliz

o que me faz feliz
o meu mundo ao contrário

O meu Farol

O meu Farol

A bela foto

A bela foto
o descanço dos meus olhos

A minha cama na relva

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O meu Algarve

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...enquanto uns trabalham...

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